Gangue

Saul Leiter_San Genaro_1958
Saul Leiter – San Genaro – circa 1958

A noite iluminada de letreiros de boate, numa zona portuária que logo adiante era erma como o nada. Um limiar.

Eu caminhava também no limite entre o sempre ter feito parte daquilo tudo – “uma mulher do porto”, era como eu sempre me definia aos amigos da minha cidade adotada – e ser uma ainda pequena Alice que adentrava o caleidoscópico desconhecido.

Estava inchada de desejo, mas era só por dentro do peito, era uma ânsia – essa que frequentemente corrói as pontas das minhas unhas – que, desta feita, era perseguir uma diversão qualquer. Eu estava indo dançar. Sozinha, em busca de dançar, sem companhia, à beira do precipício da sedução. Estava frio, era tão tarde, quase um fim-de-festa intransponível, mas eu sabia que aquilo não acabava nunca, então seguia, percorrendo os paralelepípedos.

Com a rua ainda coberta pelo manto da escuridão, um grupo de criaturas da rua se emparelhou nos meus passos. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Eu não tenho, rebati. O que eu tinha já gastei e vou tentar entrar ali de graça, disse, apontando para a entrada da boate, logo adiante. Pensava que podia, ou não, ser minha salvação. A noite já se convertera num lusco-fusco que seria logo o amanhecer, mas o entra-e-sai de gente não parecia arrefecer.

Consegui deixar os vagantes para trás e passei pela primeira barreira. Estava na antessala que precedia a pista. O tunts-tunts ribombava lá dentro, mas eu, rica que estava, tentava me proteger de mãos gananciosas. Tirei, pois, do bolso o bolo de dinheiro que negara aos moradores de rua, e vi que tinha na mão centenas de reais, em notas novas, intactas, cheirosas. Separei em duas diferentes porções e os coloquei em bolsos invisíveis nas minhas calças, na altura das panturrilhas, antes de entrar na boate.

Schrödinger

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Na Avenida Ipiranga.
Edifício antigo em São Paulo.
Sei que vou te encontrar.
Falo com seu pai lá no alto, ao lado da casa de máquinas do elevador.
Você está no antigo quarto, a porta fechada.
Uma antessala da reexistência.
Mas a porta que nos separa não se abre
pois separa os universos em que estamos.
Temo desvendar.
Sentada na escadaria sob a claraboia na manhã branca,
olho fotos coloridas impressas em papel fotográfico.
Nelas você sorri sob o flash um pouco desfocada.
Eu examino foto por foto e me pergunto se você ainda é a mesma.
Eu não sou.
Não dá para ficar ali e esperar.
Melhor sair e não voltar.
Melhor não forçar a porta dos universos.

 

Delitos alimentares

breakfast.gifCafé da manhã de hotel. Um amplo salão cheio de gente tomando seus desjejuns. Para mim não havia muita variedade. Pão de forma torrado, pouca coisa para passar em cima, algum café com leite para fazer descer o miolo quase seco. Uma mulher, que compartilhava a mesa comigo, tinha uma cesta cheia de guloseimas. E, ao sair da mesa, levou a cesta consigo, despertando minha inveja.

Sucedeu-a na mesa um rapaz bonito, com quem comecei a entabular uma conversa de amenidades quaisquer. Lá pelas tantas, o rabo de uma frase do moço diz:

“… você veja: eu, no alto dos meus 79 anos, nunca…”

“Oi? Você, 79 anos? Isso é impossível”, interrompi, observando sua pele, seu rosto, com meticulosa atenção. Nenhuma ruga, nada. Não daria para ele mais do que 30 anos, e talvez até menos.

“É verdade”, ele disse. “Se quiser, te mostro meu RG”.

Eu o fiz mostrar seu RG e, a não ser que fosse um documento falso, lá estava. O “moço” tinha 79 anos.

Incrédula, eu lhe saraivava de perguntas sobre sua condição tão peculiar. “Mas então sua alimentação é algo na linha vegana-ayurvédica-ômega 3-ortomolecular!” Ele só fazia dar risadinhas misteriosas. Eu apontei para sua refeição matinal, acusadoramente:

“Mas você está comendo pão branco e tomando café com leite de vaca. Tudo isso é extremamente inflamatório!”. Ele não me respondeu, pois estava de boca cheia.

Saí dali para procurar por um telefone público e ligar para a minha esposa, versada em alimentação saudável e não-inflamatória, para lhe consultar sobre a possibilidade de haver uma espécie de matusalém moderno que se alimentasse de pão branco e leite de vaca industrializado (e, ao mesmo tempo, delatar esse crime horrendo). Mas acabamos falando de outras coisas e deixei, sem perceber, o assunto do rapaz de lado.

Queen Lizard

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foto: Lívia Araújo

Tildinha, a gata amarela, era uma lagartixa peluda, rainha que liderava um exército de lagartixas pequeninas, que percorriam vivamente o interior de um carro em movimento, onde havia essa moça que prometia me levar a uma casa de jazz em Chigago, onde muitas vezes cantou Ella Fitzgerald no passado. A ideia era ótima, eu pensava, enquanto sentia sobre meu braço as ventosas geladas da felina réptil, que miava enquanto eu coçava sua cabecinha.

 

 

A doença que veio das ondas

giphyHavíamos enfrentado ondas implacáveis que invadiram a praia e a vila no inverno. Estragaram o feriado, arrasaram tudo. Mas estávamos todos vivos, molhados, e contabilizando prejuízos. Tudo estava ensopado. Tapetes, móveis, roupas, tudo. Passaram-se horas e coisas aconteceram em meio a uma umidade intensa como se tivéssemos acabado de sair vestidos de uma piscina.

Uma velha senhora de cabelos brancos e a dignidade de uma Ellen Burstyn, apareceu vestindo um impermeável marrom. Disse a um homem jovem que vinha da grande guerra. O jovem ficou impressionado num primeiro momento, mas percebeu que o casaco era moderno e riu, sem acreditar no que achava que era mentira. A senhora também riu.

Eu percorria as salas e os quartos das casas encharcadas. Em um dos cômodos, abri um pacote e tirei uma fita cassete de meu amigo R., que, novidade para mim, andava cantando e compondo muito bem. “Uma maneira ótima de se refazer”, pensei. Apertei o play e uma música incrível se desenrolou: uma canção de amor e mágoa a respeito de seu irmão mais novo, que eu achei a coisa mais linda do mundo.

Depois que tudo havia passado, eu embarquei num ônibus na cidade de São Paulo. O espaço era amplo, pois havia poucos passageiros. A maior parte dos assentos dava as costas ao sentido do caminho. Sentei-me num dos poucos bancos virados para a frente. Conforme o ônibus ia enchendo, uma espécie de comissária de bordo oferecia balas, chicletes e outros doces aos passageiros, mas tudo era muito burocrático. Era necessário aderir a um plano mensal que dava direito ao consumo aparentemente ilimitado das guloseimas. Desisti logo da estranha conversa, justificando que a parada estava cada vez mais próxima e eu precisava descer.

Enfim cheguei à casa daquela moça que eu conhecia, e que me abrigaria por uma noite ou duas. Ela tinha uma filha de uns sete ou oito anos.

Fui tomar um banho, tomando cuidado para que a menina não me visse nua. Eu me despi no quarto de hóspedes, que era também o quartinho da bagunça. Vi que a pele das minhas pernas escamava. Ao passar meus dedos sobre a pele, essas escamas caíam, assim como grossos pedaços de pele cristalizada. Fiquei assustada. Acho que tanta umidade tinha me causado alguma espécie de doença cutânea. Tantos pedaços da minha pele caíam, que já se entrevia a carne viva e inflamada por entre as rachaduras de pele seca. Sem avisar a mulher ou a menina, coletei um desses pedaços de pele endurecida e o coloquei numa especie de microscópio eletrônico altamente tecnológico, que ficava bem ali no quartinho da bagunça. E o que vi foi assustador e fascinante: eu estava infectada por uma espécie de protozoário de nadadeiras violetas ondulantes, que agia sobre minhas células, solidificando-as.